Kali é uma Deusa Negra hindu (para aprofundamento no conceito das Deusas Negras, recomendo fortemente a leitura do livro Mistérios da Lua Negra, de Demetra George), também relacionada ao aspecto triplo (criação, preservação e destruição). Ela controla o poder do tempo, que a tudo devora. De acordo com Claudiney Prieto, no livro Todas as deusas do mundo:
Kali é uma deusa muito antiga. Sua pele negra demonstra que ela pré-data a invasão ariana, de pele clara, no continente indiano. Esse conflito torna-se visível em muitos mitos em que Kali se esforça para defender seu povo contra invasores. A paixão e a ferocidade de Kali são divididas em seu aspecto de Deusa pré-ariana e como consorte de Shiva, que inspira o seu poder de Shakti ou energia feminina.
Os invasores introduziram a cultura dos Deuses patriarcais na Índia, mas Kali continuou a ser cultuada por várias tribos matriarcais, como os Shabara de Orissa. (p. 163)
Kali é retratada de muitas formas e possui também muitos epítetos. Em sua representação mais conhecida, ela apresenta longos cabelos pretos, a língua estendida para fora, dentes afiados e brancos, vários braços (o número de braços varia) e um colar de cabeças ou crânios, dentre outros simbolismos. Na arte popular indiana, as divindades de pele negra são retratadas na cor azul, por isso Kali (a negra) aparece sempre dessa cor. Também acompanha as representações de Kali o hibisco vermelho, que representa sua língua.
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Eu não vou me aprofundar nos mitos e lendas indianos, prefiro sempre indicar um livro com um estudo mais denso. Os dois livros que cito acima são muito bons, mas para quem deseja ler um texto na internet, recomendo este aqui: Kali: a mulher mais poderosa do universo.
Fazer a representação de uma divindade de outra cultura, principalmente oriental, sempre é inquietante, pois me coloca de frente à questão: estou fazendo uma leitura respeitosa dessa cultura ou cometendo um ato de apropriação cultural? E acho importante, enquanto artista, não me escorar na "liberdade criativa" para realizar um trabalho vazio e até mesmo ofensivo.
Por isso, quando li Mistérios da Lua Negra, dentre outros livros, e tomei contato com Kali, assim como tem acontecido com outras divindades, decorrente do meu estudo sobre bruxaria, entendi que poderia utilizar os meus conhecimentos para representá-la com o máximo de respeito e unidade, e que não se tornasse um trabalho puramente estético e sem sentido. Eu não queria tomar decisões que visualmente parecessem bonitas, mas que desrespeitassem a religião e a espiritualidade de outras pessoas. E espero ter conseguido isso, tomando as decisões que vou explicar a seguir.
A primeira atitude que tomei foi procurar representações de Kali na internet, e achei muitas imagens, que dividi em duas categorias: as imagens tradicionais indianas, que seguem a corrente popular de representação, com cores muito saturadas, atenção aos detalhes e uma fisicalidade como se fosse uma escultura representada na pintura; e as imagens ocidentalizadas, que mostram uma imagem embranquecida da deusa, geralmente com um corpo mais magro, com traços ocidentais, com a expressão suavizada, e com uma paleta de cores mais neutra.
Eu quis me afastar das imagens ocidentalizadas, por entender que elas representam um whitewashing gigante, assim como já acontece com outras figuras orientais, que sempre têm suas características culturais substituídas por características ocidentais alinhadas ao padrão estético dominante. Por isso, mantive tanto a paleta de cores, como a expressão facial de fúria o mais próximo possível das imagens tradicionais. Mesmo colocando o meu olhar, e optando pelo retrato, que é meu foco, esse foi o ponto que me guiou, nem que eu tivesse que sair da minha paleta de cores ou da minha zona de conforto neutra. E foi a partir daí que construí a figura.
Outro ponto é que, nas imagens tradicionais, geralmente Kali está com o rosto em meio perfil, por isso também quis manter essa representação. O azul é muito saturado, e se acentua no rosto, com todo sombreamento em preto, que geralmente não uso. Para essa ilustração, fiz toda a base com aquarela (úmido sobre úmido) e complementei os contrastes com lápis de cor. Os cabelos são uma massa escura e esvoaçante. Suas joias são em tons dourados com detalhes em pedraria, que se complementam nos hibiscos (em tons de vermelho vivo e vermelho alaranjado) e no fundo da imagem. Sobre o colar de crânios, coloquei 7 em evidência, por ser o número regente do ano de 2023, e por não conseguir colocar a variação total de crânios, que pelas minhas pesquisas fica entre 51 e 108.
Materiais utilizados
- Papel para aquarela 100% algodão Hahnemühle;
- Aquarelas White Nights;
- Lápis de cor Albrecht Dürer e Bruynzeel;
- Pincéis que comprei na Shein;
- Marcadores Pilot e Derwent.
Kali é a corporificação da violência feminina, protetora do coração, aquela que vem para nos afastar de tudo o que não é verdadeiro. É a feroz energia da psique, a luz da discriminação, a espada do conhecimento, o poder para reconhecer o que precisa ser feito. A espada de Kali se transforma e redefine nossas vidas, nos afiando e nos esculpindo, trazendo a ordem para fora do caos, nos ensinando os significados, as belezas e os propósitos de nossas vidas. Kali é a sombra fertilizadora, a guardiã da profunda escuridão vazia, os sempre mutantes ciclos do tempo. (p. 166)
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