Self Portrait (e uma reflexão sobre arte e IA)

21/07/23


A última vez que troquei meu avatar nas redes sociais foi em 2020, auge da pandemia, com o retrato que fiz para o projeto final do curso da Isadora Zeferino para a Domestika. Foi o autorretrato que mais gostei de fazer e que, desde então, permaneceu como foto de perfil em todos os lugares. 

Porém, desde o início do ano, sinto vontade de atualizá-lo, permanecendo na mesma linha, mesma paleta, só dando uma leve modificada na imagem, afinal, a gata aqui envelhece como todo mundo... e desde que me propus a isso, confesso que a tarefa se tornou um pouco ingrata, pois eu não conseguia ou chegar perto do resultado de três anos atrás, ou a figura simplesmente não ficava parecida comigo o suficiente para reconhecer que era meu avatar.

Então foram muitos estudos, muitas ideias e artes finais descartadas, muita tinta usada, até que consegui pegar algumas fotos de referência legais e transformar num rascunho que poderia ser, finalmente, a arte que eu queria.

Vale destacar que também foi um período de intensa insatisfação com meus resultados, muito por conta do excesso de imagens geradas por inteligência artificial e filtros que podem te transformar em absolutamente tudo: de Barbie a membro da casa Targaryen. Isso é muito frustrante, porque o trabalho criativo é solitário, requer muita pesquisa, muito estudo, muito descarte. E ter uma coleção de fotos ou ilustrações feitas em segundos por um app é algo que te faz questionar o por quê de seguir criando. Qual é o papel do artista, principalmente do artista que trabalha com técnicas tradicionais (como eu), numa sociedade que está caminhando para a massificação das imagens geradas por IA? O quanto eu e outros artistas se deixam influenciar por isso, ou estão questionando isso? Dos artistas que acompanho, o que percebo é uma discussão mais intensa na comunidade internacional e artistas daqui com grandes clientes no mercado internacional. Mas esse é um recorte de quem sigo e acompanho.

Percebam que aquela ideia inicial de trocar o avatar das redes se tornou um grande dilema existencial sobre o lugar da arte tradicional em meio à popularização da IA. E achei a oportunidade maravilhosa para sair um pouco da minha bolha escolar e voltar a divagar como fazia lá nos primórdios do blog, pois são essas questões que ventilam as nossas ideias e trazem desconfortos necessários.

Qual é o papel do artista, principalmente do artista que trabalha com técnicas tradicionais (como eu), numa sociedade que está caminhando para a massificação das imagens geradas por IA?


Acredito que esse debate abre muitas frentes: a primeira delas é questão da ética na autoria. A maioria dos aplicativos e sites que criam imagens através da IA utilizam a internet como banco de imagens para seus trabalhos. Isso quer dizer que muitos artistas estão tendo obras e estilos copiados sem autorização e sem ser pagos por isso. O caso do app Lensa já é bastante conhecido: algumas imagens produzidas por ele apareciam até mesmo com a assinatura dos artistas borrada. 


A segunda questão está relacionada ao uso dessas imagens para gerar poses, cenários, esquemas de cores, coisas que sites geradores de poses, por exemplo, já fazem. Mas aqui teríamos um maior domínio dos artistas sobre os comandos, gerando imagens realmente interessantes como ponto de partida para outros trabalhos. Esse é o viés que mais me agrada no uso da inteligência artificial, e que acredito ser um caminho muito interessante como ferramenta auxiliar.


A terceira questão tem a ver com o próprio processo criativo. IA cria? Ou a criação artística é algo inerentemente humano? Essa é uma discussão mais filosófica, que também acho extremamente válida. No seu livro Gesto Inacabado, Cecilia Almeida Salles fala que "muitos artistas descrevem a criação como um percurso do caos ao cosmos. Um acúmulo de ideias, planos e possibilidades que vão sendo selecionados e combinados. As combinações são, por sua vez, testadas e assim opções são feitas e um objeto com organização própria vai surgindo. O objeto artístico é construído deste anseio por uma forma de organização (grifo meu)". (p. 41) Sendo assim, o anseio criativo partiria de quem deu o comando para a imagem ser feita, assim como já acontece na fotografia, por exemplo, dentre outras formas de criação artística que utilizam tecnologias. Vale destacar aqui o caráter satírico de artistas como Cindy Sherman, por exemplo.


E uma quarta questão que também penso ser muito interessante, tem um cunho mais social: sabemos que quando alguma coisa massifica, a elite dominante sempre acaba rejeitando-a e criando novas formas de exclusividade. Aconteceu isso com a calça de shopping, que quando atingiu as massas passou a ser considerada cafona, e também com a democratização de acesso a celulares com uma boa câmera (imediatamente as celebridades começaram a postar fotos granuladas, com efeito "antigo", distorcidas, e até mesmo reviveram a câmera digital cybershot, para parecer cool). Se as imagens geradas por IA se democratizam, todos podem ter acesso a, por exemplo, um retrato com efeito aquarela, assim como o que eu mesma fiz, mas sem pagar para um artista fazê-lo, apenas baixando um app para isso (que vai coletar inúmeros dados...). Então a elite - e precisamos fazer aqui o recorte social de que arte, para a grande maioria da população, é um artigo de luxo - rejeitaria essas imagens e passaria a pagar pela exclusividade de uma obra feita à mão. Pode parecer vantajoso para os artistas, mas se nós nos dobramos ao que a elite quer e passamos a fazer somente arte para satisfazer o ego dessas pessoas, onde fica o papel crítico e político do nosso trabalho? Além disso, os nichos se estreitariam cada vez mais, e aqueles artistas com contatos no meio dominariam ainda mais os espaços, em detrimento de artistas periféricos e minorias.


Ainda acho que vamos presenciar muitos desdobramentos dessa discussão, trouxe aqui alguns pontos que são questionamentos meus, muito pessoais. Existem tantos outros que eu não conseguiria numerar, pois tudo ainda é muito incipiente, e é incrível acompanhar a escrita da história.




Vamos ver o resultado final desse retrato?



Materiais utilizados

  • Papel para aquarela Arches 300g;
  • Aquarelas Pestilento e White Nights;
  • Pincéis Keramik;
  • Marcadores Pentel.


Aqui uma foto minha com o retrato, orgulhosa do resultado:



E se você quiser um retrato feito pela inteligência dessa artista, é só entrar em contato para solicitar um orçamento. 💜

Comentários

  1. É a primeira vez que vejo alguém comentar sobre esse assunto com inteligência, clareza e uma noção política e social sobre as AI no mundo da arte. Esse texto deveria viralizar, pois a sua crítica foi pontual para nosso momento. E parabéns pelo belo trabalho artístico em aquarela!

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    1. Nossa, nem tenho como agradecer um comentário desses 🥹 Muito obrigada, de verdade!

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