Sobre frustração e se definir artista

11/01/24

 

Foto de Artiom Vallat na Unsplash


Esse texto ressoa alguns sentimentos que estão latentes desde 2022 e que eu já havia começado a escrever no início do ano passado, mas que não publiquei. Aproveitando que hoje é um dia portal e Deipnon, vou jogar essas reflexões para o universo, para que encontrem vez e voz em outros corações e mentes.

Geralmente as férias são o período que eu mais me dedico à arte, por motivos óbvios: não preciso planejar aulas e nem encontrar um espaço no meio da rotina de trabalho. Posso sentar com calma e passar a tarde toda me dedicando à aquarela, ao desenho, à criação. Costumo dizer que durante as férias eu deixo de ser professora, sequer faço menção ao trabalho docente, só retomo essa parte da minha vida quando preciso retornar à escola.

Só que esse ano resolvi fazer diferente. Estou de férias. E isso quer dizer que estou criando no meu tempo, lendo no meu tempo, fazendo vários nada, passeando no shopping, tirando o sono atrasado, vendo programas que não preciso usar muito meu cérebro. Enfim, estou descansando e organizando a minha cabeça e minha vida. 

Os últimos três anos foram muito complicados e me vi em alguns dilemas que achei que já haviam sido superados. 2022 foi um ano extremamente difícil em sala de aula. Depois de dois anos de ensino remoto, perdi a conta de quantas vezes fui testada por estudantes que não queriam estar ali, e deixavam isso bem claro. Minha aula passou a ser chata, eu virei uma carrasca, tudo porque eu queria… dar aula. Já em 2023 assumi mais uma coordenação e não tive turmas. Mas em compensação, tive que lidar com toda a carga mental que é planejar formações pedagógicas, cobrar planejamento, projetos, auxiliar no dia-a-dia e no burocrático de uma escola.

Me vi num lugar de insatisfação pessoal impensável a essa altura do campeonato: eu tinha emprego, casa, realização. Mas passei a me sentir frustrada demais: enquanto professora, por não conseguir dar aula do jeito que queria, enquanto coordenadora, por não avançar no trabalho pedagógico, e enquanto artista por não encontrar motivação para criar, não por causa de bloqueio criativo, mas porque fui engolida pela rotina e precisei deixar a arte de lado em muitos momentos.

Passei a ver amigos e outros artistas se realizando em suas carreiras, participando de feiras, pegando comissões, expondo, e me peguei estagnada na vida. A mesma sensação que me consumia lá atrás e eu via todos passando em concursos, com estabilidade, enquanto eu esperava a minha vez. E ela apareceu. Só que todo aquele planejamento que eu havia feito de passar num concurso, ter uma renda para me manter e poder escolher o que eu queria com minha arte deixou de fazer sentido, pois na minha cabeça eu não estava fazendo “nada”. A arte se transformou numa vírgula da minha vida, e a docência era toda a pedreira que dizem que é. Vi toda uma trajetória de mais de uma década passar batido diante dos meus olhos, me recolhi numa concha muito amarga, muito negativa. Eu não era mais artista, era só uma professora que desenhava nas horas vagas, e às vezes nem isso.

E foi daí que a insatisfação só aumentou, se transformou em tristeza e até mesmo em dor física. Eu dei errado, não consegui ser boa o suficiente pra me sustentar com arte, e nem estava sendo uma boa professora. Todo mundo se realizou, menos eu. Fracassei, enquanto todos pensavam que eu seria aquela que despontaria. Uma amiga me aconselhou a ser mais otimista, que as coisas boas vinham. Outra me disse que estava tentando passar em concurso para equilibrar arte e docência, assim como eu. Outra, queria abandonar a docência pra se dedicar à arte. Outra, ainda, ia abandonar a arte para se reposicionar no mercado.

Depois de várias crises e uma bateria de exames que constataram vários problemas hormonais, resolvi colocar a cabeça pra fora dessa água turva em que estava metida, e comecei um processo interno de me auto-analisar para perceber o que realmente me fazia artista e o que significava realização pessoal para mim. Após mais uma rodada de conversas com outras artistas (obrigada, Rami, por ter me lembrado de que nos piores momentos com meu pai no hospital, eu estava produzindo arte), comecei a ponderar muitas coisas.

A primeira delas é que bom ter um emprego estável. Um emprego com responsabilidade social, que me permite pagar as contas, sustentar a casa, comprar materiais e investir na minha arte, me proporcionando escolher em quais projetos desejo trabalhar, ou se desejo desenhar somente pra mim. Não é o emprego com a melhor remuneração do mundo, mas foi o que escolhi como profissão, e também quando decidi que era melhor assim, para justamente tirar das minhas costas essa necessidade de viver de freelancer e sem a menor estabilidade financeira, sem saber o dia de amanhã. E dificuldades todos os empregos têm. O pulo do gato é saber o que fazer com essas dificuldades. Se o desaforo de um estudante ou até mesmo de um colega vai me afetar ou, se como a adulta que sou, vou dar de ombros e seguir minha vida. Se vou dizer não quando algo ultrapassar o que está descrito na minha função, ou se vou aceitar ser explorada só para parecer legal. Se vou tentar colocar pitadas do que acredito no dia-a-dia, ou se vou me deixar levar pela situação de terra arrasada que outras pessoas tão frustradas quanto eu tentam colocar em cada momento.

A segunda delas é, afinal, de quem eu preciso de validação pra me considerar artista? Eu tenho um diploma em Artes Visuais, trabalho há mais de dez anos com isso, tenho obras em acervos, estou esperando por acaso alguém vir com uma vara de condão e me abençoar ou me nomear? Tudo que eu faço já não é suficiente? A validação precisa vir de dentro ou de fora? Eu que sou uma defensora do tempo real que temos, e não daquele tempo idealizado; eu que corri atrás de uma ferramenta digital para incluir arte na minha rotina, estava fazendo justamente uma das coisas que mais condeno, que é achar que preciso me sustentar totalmente de arte, trabalhar com arte 12 horas por dia, receber biscoito e aplausos de pessoas que eu acho desprezíveis, ou fazer parte de círculos de gente alienada da realidade.

E foi a partir desses movimentos de análise, de conversa e de tratamento mesmo, que percebi que as minhas definições de ser artista, de ser professora e de ter sucesso, estavam passando por ruídos externos e, principalmente, sendo filtradas pela ótica de frustrações que não eram minhas, mas que eu projetava em mim. Quantas vezes nós estamos relativamente de boas com nosso trabalho e somos atravessados por uma opinião não solicitada, que fica dias martelando na nossa cabeça? Ou nos sentimos orgulhosos de alguma conquista, mas outra pessoa conquistou mais ou menos e isso reverberou em nós de alguma forma e nos afetou?

É difícil não se deixar afetar por todo nosso contexto de vida, mas um dos meus principais mantras para 2024 é me submeter somente à minha verdade. E a minha definição de artista, dentro do que considero como verdadeiro, é ter esse privilégio de poder criar. O ato criativo passou por muitas redefinições ao longo dos últimos anos. Temos autores que defendem que todos podem criar, outros que questionam justamente essa necessidade. Hoje em dia, todos são criadores de conteúdo... Mas, para mim, a criação é um ato inerentemente humano, é o divino dentro de nós, e o que dá sentido à nossa existência. E se eu acreditar que é isso que me define, este é o caminho que devo seguir.

Se você é artista ou está passando por momentos de insatisfação na vida, sinta-se abraçado.

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