Linda Nochlin e "Por que não houve grandes mulheres artistas?"

28/02/25

 

Salomé com a cabeça de São João Batista, Artemisia Gentileschi, 1610-15.
Salomé com a cabeça de São João Batista, Artemisia Gentileschi. 1610-15.

Por que não houve grandes mulheres artistas? é um artigo de Linda Nochlin publicado na década de 1970, no qual a autora responde a essa questão de maneira incisiva: não existiram grandes mulheres artistas do mesmo modo que não existiram grandes artistas orientais, africanos e sul-americanos, pois a arte ocidental está alicerçada num forte recorte social, que privilegia o homem branco europeu burguês. Fora desse recorte, não há espaço para se pensar a genialidade ou a grandeza artística.

Eu poderia encerrar o post aqui, mas são tantas camadas (e longe de mim contemplar todas elas), que minha cabeça ficou fervilhando após a leitura do texto. Na realidade, ela vem fervilhando desde Modos de Ver, que trouxe uma forte interrogação e me fez entrar num hiato de produção pessoal, justo por não ver muita coerência entre a minha leitura e a minha prática artística. E é saudável que esses momentos de choque aconteçam, pois o questionamento é uma constante da vida, quem não se questiona é porque já se conformou com uma situação péssima, ou é tão privilegiado que pode se dar ao luxo de viver uma existência alienada da realidade.

Em Modos de Ver, John Berger traz uma problematização extensa sobre alguns dos pilares imagéticos da tradição ocidental, como o nu, a pintura a óleo e a natureza morta. Todos esses, em algum grau, servem para reafirmar a noção de propriedade sobre alguém ou algo, seja do corpo da mulher, do acúmulo de riquezas ou de grandes extensões de terra. E como proprietário, se entende o homem branco europeu burguês.

Nochlin faz um caminho semelhante, partindo do pressuposto de que a pergunta é um tanto truncada. Ela nos leva a pensar, num primeiro momento, que sim, existem muitas mulheres artistas, e passamos a elencá-las como uma lista de supermercado, justificando que não há cabimento pensar que grandes mulheres artistas nunca existiram. Ou então, seguimos a linha de que há um estilo de arte inerentemente feminino difícil de mapear.

Mas, de acordo com Nochlin, a resposta correta é de que não existiram grandes mulheres artistas do mesmo modo que não existiram afroamericanos equivalentes a Kooning ou Warhol, pois as coisas na arte e em tantas outras esferas é desestimulante “para todos aqueles que, como as mulheres, não tiveram a sorte de nascer brancos, preferencialmente classe média e acima de tudo homens.” (p. 8)

a ingênua ideia de que arte é a expressão individual de uma experiência emocional, a tradução da vida pessoal em termos visuais. A arte quase sempre não é isso; a grande arte nunca o é. O fazer arte envolve uma forma própria e coerente de linguagem, mais ou menos dependente ou livre de convenções, esquemas ou noções temporalmente definidos que precisam ser aprendidos ou trabalhados através do ensino ou de um período longo de experimentação individual. A linguagem da arte, materialmente incorporada em tinta, linha sobre tela ou papel, na pedra, ou barro, plástico ou metal nunca é uma história dramática ou um sussurro confidencial. (p. 7)

São poucas as áreas vistas como historicamente femininas que são disputadas por homens e, quando isso acontece, geralmente a posição alcançada surge acompanhada pelo status: homens cozinheiros se tornam chefs, por exemplo, enquanto as mulheres seguem exercendo as funções mais rotineiras dessas profissões.

No cerne da pergunta Por que não houve grandes mulheres artistas? estão embutidos vários estereótipos a respeito do fazer artístico, dentre eles, o mito do Grande Artista, aquele que possui a genialidade, sem levar em conta as condições sociais, econômicas, de gênero e raça que possibilitam que esses artistas desenvolvam sua técnica. Isso cria uma narrativa romantizada e cheia de lendas sobre artistas descobertos em condições excepcionais, ou que superaram seus mestres de maneira notável. Mas, como aponta Nochlin:

Não há dúvida, por exemplo, que o jovem Picasso tenha, aos quinze anos (e, em apenas um dia) passado em todos os exames admissionais para a Academia de Arte de Barcelona e, mais tarde, para a de Madri, uma grande demonstração de proeza, já que a maioria dos candidatos precisava de um mês para tal. Porém, gostaria de saber mais sobre histórias semelhantes de candidatos precoces que não alcançaram nada mais além da mediocridade ou o próprio fracasso. Estes são casos que não interessam aos historiadores da arte, estudar com mais detalhes, por exemplo, o papel protagonizado pelo pai de Picasso, professor de arte, na sua precocidade pictórica. E se Picasso tivesse nascido menina? Teria o senhor Ruiz prestado tamanha atenção ou estimulado a mesma ambição de sucesso na pequena Pablita? (p. 17-8)

Nos Séculos XVII e XVIII, a transmissão da profissão artística de pai para filho era amplamente reconhecida. E os filhos dos acadêmicos não pagavam taxas pelas aulas. Muitos artistas tinham pais também artistas, o que ampliava o acesso ao que precisavam para desenvolver sua arte. Sendo assim, esses artistas tiveram contato, desde a mais tenra idade, quando os estímulos são essenciais para aquisição da linguagem e desenvolvimento expressivo, aos materiais e métodos que possibilitaram aflorar seu “talento", em detrimento de qualquer ideia de gênio absoluto isolado do meio social.

Não vou comentar sobre como Nochlin fecha seu texto, pois acho válida a leitura do artigo na íntegra, e também a reflexão trazida pela Edições Aurora no posfácio. Mas o que fica é que precisamos retirar uma grande camada de verniz romantizador da história da arte e de como mulheres e minorias são tratadas pelas instituições oficiais e entre seus pares.

O que fica para mim, enquanto artista, é que não tenho a pretensão de salvar o planeta com a minha arte, nem que sou o último baluarte da arte feminina, mas que o ato de criar é valioso para mim e dá sentido à minha vida. E isso precisa bastar.

O artigo de Linda Nochlin pode ser encontrado aqui.
5★

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